Tese de que o líder negro foi criado por um padre
português chamado Antônio Melo divide opiniões
A infância de Zumbi dos Palmares é repleta de
controvérsias. Foto:Pixabay
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Em um final de tarde de 3 de dezembro de 1655, o padre português Antônio
Melo trancou sua igreja na cidade de Porto Calvo, à época na Capitania de
Pernambuco, hoje pertencente ao estado de Alagoas, e começa a atravessar a rua
de terra batida que o separava da praça principal da pequena cidade. Mas, antes
de chegar ao outro lado, parou, surpreendido pelo ruído de cavalos.
Homens mal-encarados e armados de flechas, espadas e pistolas apearam de
seus cavalos. Junto com eles, uns poucos negros acorrentados, com feridas
abertas por todo o corpo. Cabisbaixos, olhavam para o chão com olhos vazios. Já
seus algozes tinham a arrogância típica dos capitães do mato, os violentos
caçadores de escravos fugitivos.
O padre Melo ficou ainda mais nervoso quando viu o capitão Brás da Rocha
Cardoso, herói da guerra contra os holandeses, encerrada um ano antes, que
caminhava em sua direção segurando um embrulho de panos impregnado de todos os
marrons da estrada. Sem beijar a mão ou pedir bênçãos, o capitão disse, seco:
“Essa cria é sua, padre. Pegamos nos Palmares dos pretos e não temos serventia
para ele. Faz dele o que o senhor achar melhor”.
O “Palmares dos Pretos”, sobre o qual Cardoso se referiu, era o Quilombo
dos Palmares, local que foi abrigo para escravos fugidos dos engenhos de cana
nordestinos. O padre desembrulhou os panos empoeirados e se compadeceu na mesma
hora da criança, nascida havia poucos dias.
Mistério
Tão logo os capitães do mato e seus presos partiram, padre Antônio Melo
sentou-se ao pé da igreja, olhou a criança e decidiu: “Vai chamar-se Francisco,
é o santo do dia”.
O tempo passou e Francisco, já adolescente, lia, escrevia, falava latim e
português, interessava-se pelas estratégias do jogo do xadrez, ajudava nas
missas como coroinha e, nas palavras do próprio padre, demonstrava “engenho
jamais imaginável na raça negra e que bem poucas vezes conheci em brancos”. Era
um garoto brilhante, porém recluso. Vivia imerso nas letras e não tinha amigos,
além do padre.
Numa manhã de domingo de 1670, Antônio Melo resolveu ir até o quartinho do
garoto. Preocupara-se porque seu pupilo, sempre pontual e dedicado, não
apareceu para ajudar no serviço matinal. Surpreso, constatou que Francisco
havia partido com suas poucas posses.
A única coisa que deixou para trás foi um bilhete, escrito a carvão: “Padre,
agradeço por cada lição que o senhor me passou, mas meu sangue clama: tenho de
unir-me a meus malungos de Palmares. Francisco”. Pouco depois, Zumbi se
tornaria o líder absoluto do quilombo e seria o comandante na sua derradeira
batalha contra a Coroa Portuguesa.
“História
bonitinha”
“É bonitinha essa história, né?”, ironiza o sociólogo e historiador Jean
Marcel Carvalho França, coautor de Três Vezes Zumbi. Escrito em
parceria com o também historiador Ricardo Alexandre Ferreira, o livro
destrincha a construção da imagem de Zumbi ao longo de três séculos. A ironia
com que França trata a versão do coroinha guerrilheiro é dirigida ao
pesquisador gaúcho Décio Freitas, autor do livro Palmares, a Guerra dos Escravos, no qual ele conta a pretensa
infância de Francisco-Zumbi.
“Freitas transgride uma regra do meio historiográfico: se você apresenta
uma notícia muito nova, tem de trazer uma documentação coetânea, um indício que
comprove as suas acepções. Sobretudo, se elas são polêmicas, se elas escapam ao
que você tem de expectativa, de senso comum”, afirma França.
É aí que mora o problema: Décio Freitas morreu em 2004, sem nunca
apresentar alguma prova dessa versão. Em seu livro, ele afirma que teve acesso
a extensa correspondência entre o religioso de Porto Calvo e outro padre
português, a quem ele contava a criação do garoto quilombola. “Nesse caso
específico, Décio Freitas teria que ter trazido as tais cartas”, critica
França.
A versão do Zumbi coroinha teve adeptos, como o historiador Clóvis Moura,
falecido um ano antes que Freitas, que em seu Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, publicado pela Edusp,
a editora da Universidade de São Paulo, publica a versão da infância do menino
Francisco na companhia do padre Antônio Melo, no verbete que dedica a Zumbi. Também
Jorge Landmann, que em 1998 escreveu o romance histórico Troia Negra – A Saga dos Palmares, defende que as cartas do Padre
Melo existem e estão guardadas na Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal.
O historiador Carvalho França tem uma explicação para o fato de essa
versão de um Zumbi com educação formal e inteligência acima da média ter
conquistado adeptos, mesmo sem apresentar evidências documentais consistentes.
Segundo ele, na primeira metade dos anos 1970, época da publicação
de Palmares, a Guerra dos
Escravos, existia uma demanda
por um herói romântico negro. E o protagonista de Décio Freitas é exatamente
isso. “Primeiro, ele é naturalmente inteligente, esse é o traço romântico. É a
primeira característica do herói. A segunda característica é a ideia de que o
conhecimento ilumina. Ele vem, busca o conhecimento do branco e volta mais
esclarecido. Ele leva a chama da liberdade.” Em posse dessa luz intelectual e
moral, Zumbi comanda uma guerra dentro do quilombo contra o próprio tio, Ganga
Zumba, depois que este assina um acordo de paz com os portugueses.
Representação do Quilombo dos Palmares Wikimedia Commons
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O restante da história de Zumbi é mais consensual entre os historiadores.
Ele permaneceria na liderança do quilombo e resistiria a várias investidas das
expedições lançadas contra a comunidade de negros libertos, na Serra da
Barriga.
Em 1694, o quilombo foi invadido por forças lideradas pelo bandeirante
paulista Domingos Jorge Velho. O quilombo foi desarticulado e seus moradores
presos e tornados escravos. Zumbi foi ferido e desapareceu. Quase dois anos depois,
acabou capturado e morto. Sua cabeça foi cortada e exposta em praça pública em
Recife. Um selvagem recado para os escravos que sonhassem em rebelar-se contra
seus senhores.
Em Angola, outro Francisco foi criado por um padre
O músico, ativista e professor Antônio José do Espírito Santo nunca gostou
da ideia de que o sucesso do maior ícone negro da historiografia brasileira
fosse atribuído a uma concessão do branco. Resolveu, então, fazer sua própria
pesquisa. Voltou sobre os passos de Zumbi, num caminho inverso, de Palmares à
África.
Espírito Santo não encontrou nenhuma confirmação para a tese de que Zumbi
algum dia foi criado por um padre português ou que se chamou Francisco.
Concluiu que a história do menino Francisco que volta para liderar os negros é
bastante improvável.
Mas não impossível. Na verdade, houve de fato um menino nobre criado por
um padre. Espírito Santo topou com essa história no que chama de “acaso fruto
da pesquisa”: “Encontrei um manuscrito de um padre capuchinho, (Marcellino) d’Atri
é o sobrenome dele. Essa figura descreve a história de um padre angolano que
teria pegado o filho do rei dom Antonio I (o nome cristianizado de
Vita-a-Nkanga), que perde a batalha e é decapitado”. O bebê Nkanga-a-Makaya é
então levado para
Luanda, junto com o corpo do pai, e cresce sob a tutela dos capuchinhos
que o batizam, curiosamente, de Francisco. Aos 20 anos, de volta ao Congo, ele
afirmou que não almejava o trono porque era “português demais”.
Por Gabriel
Rocha Gaspar
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