Armindo Teixeira Mesquita
UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, Portugal) e Presidente do OBLIJ (Observatório da Literatura
Infanto-Juvenil)
Introdução
Clarissa Pinkola Estes
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A arte de contar histórias é remota1. Encontramo-la em todas as partes do mundo. Aliás, nos velhos tempos, as pessoas do povo sentavam-se, sobretudo aos serões, à volta da fogueira para descansar do árduo trabalho diário, para conversar e para contar histórias
Sabe-se como é importante para a
formação da personalidade da criança ouvir muitas e belas histórias. Pois,
escutar histórias é uma das primeiras experiências literárias do ser humano.
Quando a criança escuta um conto, a sua mente está a produzir outro. Isto vem
reforçar a ideia de que, por um lado, a narrativa oral opera como um veículo de
emoções e, por outro lado, inicia a criança na palavra, no ritmo, nos símbolos,
na memória, desperta a sensibilidade, conduzindo à imaginação através da
linguagem global. Neste sentido, a literatura apresenta-se como meio de
manifestação de cultura.
Durante séculos, a aprendizagem
fazia-se através da transmissão oral, porque não havia livros, nem a infância
era concebida como hoje. Os valores, os costumes e as regras sociais eram
transmitidos, graças aos mitos, aos contos e a outras formas de comunicação
oral.
Com o aparecimento da imprensa, em
meados do século XV, criou-se um novo mundo simbólico e uma nova tradição: a
leitura, já que os jornais e os livros tornaram-se os grandes agentes culturais
dos povos. As fogueiras foram ficando para trás. Os velhos contadores de
histórias foram sendo esquecidos. No entanto, as histórias continuam associadas
à nossa cultura, através dos livros e das suaves vozes das mães e das avós,
para encantamento das crianças.
O conto de fadas (literário) surgiu na
Europa da Idade Moderna como tradição oral levada ao público infantil. As
histórias eram contadas de um adulto para uma criança, registando lições,
experiências, em que geralmente os heróis superavam situações desfavoráveis
através de algum segredo mágico. Por se tratar de narrações fictícias, as
acções dos contos de fadas desenrolam-se em países imaginários, povoados por
objectos e personagens mágicos e estranhos, onde o narrador e o seu público não
acreditam na realidade da história.
A grande aceitação do conto de fadas
teve, pelo menos, duas consequências importantes sobre a evolução da literatura
infantil. Em primeiro lugar, impôs o predomínio do lúdico sobre o instrutivo.
Em segundo, contribuiu para a definição de um género especificamente voltado
para as crianças.
Porquê contar contos de fadas às
crianças?
Pessoas de diferentes idades conhecem e
encantam-se com os contos de fadas. Plenos de significados, com estrutura
simples, histórias claras e personagens bem definidas nas suas características
pessoais (facilitando a identificação delas em bom ou mau, bonito ou feio,
forte ou fraco, rico ou pobre, etc.), atingem a mente da criança,
entretendo-a e estimulando a sua imaginação, como nenhum outro tipo de
literatura talvez seja capaz de fazer. As crianças gostam muito dos contos de
fadas, recomendados geralmente a partir dos 4 ou 5 anos.
Embora distantes das narrativas
originais, os contos de fadas continuam vivos, povoando a imaginação infantil e
alimentando o seu espírito. Ao mesmo tempo que os contos podem auxiliar a
criança a superar conflitos, que são inerentes ao seu processo de
desenvolvimento, constroem um sistema metafórico e simbólico. Através do tempo,
os contos de fadas mantêm o seu poder transformador e a sua magia. Magia que se
revela não só na sua narrativa, como também nas transformações que desencadeia
naquele que escuta ou naquele que narra um conto. Aliás, a magia de um conto
encontra-se no seu acto de contar:
(Veloso, 1994:45)
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As crianças bebem as palavras que saem
da boca do contador. Para isso, é preciso haver uma cumplicidade entre a
criança e o narrador.
Um dos prazeres do conto é precisamente
a eliminação das fronteiras entre o (mundo) possível e o (mundo) impossível,
entre o real e o imaginário. Guiados pela mágica expressão inicial: «Era uma vez...»; crianças e adultos soltam as amarras para
embarcarem, de imediato, no imaginário, numa aventura simbólica na companhia de
muitas personagens que, embora sejam da ficção, parecem familiares. Tal como
acontece com as crianças, as personagens vivem grandes emoções que podem ser
compartilhadas. Parafraseando Bettelheim, a criança compreende intuitivamente
que sendo irreais, estas histórias são verdadeiras; os feitos que narram não
existem na realidade, mas estão presentes como experiência interior.
As crianças entram ainda muito
facilmente nesse mundo imaginário, onde já têm um pé, porque todos os dias
inventam histórias extraordinárias nas quais elas próprias são os heróis. Fazem
falar os objectos, os animais, os brinquedos, etc. Para as crianças,
nada é estranho, tudo é lógico. Mais ainda: tudo as fascina.
Os adultos encontram também, nestas
narrações, o eco do seu mundo interior e dos seus sonhos. Por isso, não é
difícil deixar-se levar pela história, em que o aspecto das aventuras
fantásticas e as intrigas os cativa. Toda a gente se vê reflectida e cada um
pode encontrar, nos contos, o que quer e o que necessita, de acordo com as suas
preocupações.
As personagens são muito descritas, ao
ponto de podermos entrar na sua pele, de viver as suas experiências. Elas são
boas ou más, nunca ambas as coisas ao mesmo tempo como pode acontecer nos seres
humanos da vida real. Por exemplo, uma irmã é honrada e trabalhadora, enquanto
que as outras são malvadas e preguiçosas. Uma é formosa e as outras são feias.
Um dos pais é bom o outro é mau.
Ao apresentar caracteres totalmente
opostos, não pretendem provocar uma conduta adequada, mas ajudar a compreender,
mais facilmente, as diferenças entre ambos (por um lado assim funciona a mente
da criança, polarizando entre bom e mau). A ambiguidade só se estabelece quando
já se adquiriu uma personalidade firme sobre a base das identificações
positivas.
Por outro lado, a criança não se
identifica com o herói bom pela sua bondade, mas porque a sua condição de herói
a atrai muito. Aliás, o que mais lhe interessa não é bondade ou a maldade dos
intervenientes da história, mas a inteligência do herói que, geralmente, é o
ser mais pequeno e mais frágil (tal como a criança) e que, graças ao seu o
engenho, consegue vencer o inimigo (com características físicas bem mais fortes
do que as suas).
Neste sentido, o conto de fadas é
único, é uma obra de arte, por isso, é susceptível de várias interpretações. O
significado mais profundo deste tipo de contos será distinto para cada criança
(e inclusivamente para a mesma criança) em diferentes períodos da sua vida. O
que faz com que um determinado conto seja mais importante do que outro para uma
determinada criança e numa idade concreta, depende do seu estado de
desenvolvimento psicológico e dos problemas mais estimulantes daquele momento.
Os contos de fadas são tão ricos para uma criança de 5 anos como para uma de 12
anos: as suas interpretações não serão, logicamente, as mesmas.
Fonte: www.cervantesvirtual.com